Se vejo uma oportunidade de falar sobre Camus, aproveito. Se um filme me lembra algumas palavras do franco-argelino, sinto-me obrigado. Daí vem a tentativa de organizar pensamentos, opiniões, memórias num texto e tudo se embaralha. Torço sempre para que o resultado traga a você que lê pelo menos um naco desse fluxo mental.
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Saí do cinema feliz ao final da sessão de Um Lugar Silencioso: Dia Um. Ironicamente o motivo da minha felicidade foi o mesmo que levou a centenas de críticas revoltadas. Pediam a cabeça de Michael Sarnoski (diretor), denunciavam uma alma sebosa de John Krasinski (diretor dos 2 anteriores e eterno Jim Halpert) e rogavam pelo fim da franquia. Parece exagero, e talvez eu me deixe levar um pouco pelo drama. E não é que esse é justamente o problema?
Eu explico. O filme, focado num drama íntimo, levou ao chão às expectativas daqueles que esperavam respostas. Queriam saber de onde vieram os alienígenas, quais as ambições, se havia uma organização (hive mind), qual a primeira reação governamental no Dia D. De minha parte, torcia pelo oposto. Se os filmes anteriores, especialmente o primeiro, triunfaram para mim, foi justamente pelo medo de não conhecer; olhe que ainda estamos falando de uma trilogia de filmes-pipoca. Eu, particularmente, amo o suspense da falta de informação. Algumas pinceladas sobre o contexto e as regras básicas do conflito apresentado…Delicioso. O desconhecido é infinito.
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Há quem discorde; quem encontre no conforto das respostas o pilar. Trata-se sempre, então, da expansão de conhecimento. Não é o filme por si, mas pelo poder de dar forma a algo que já vivia de maneira latente na imaginação de cada um.
Certo, a escolha do título não foi das melhores. O "dia um" é mostrado de maneira superficial, é verdade. Mas, ainda que considere o título um erro, sempre defendo a máxima "Julgue uma obra pelo que ela é. Nunca pelo que você esperava que fosse". Difícil numa sociedade ansiosa.
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Voltando ao filme, recebemos uma história fechada em si, episódica, que, no lugar da expansão, nos faz acompanhar Sammy (Lupita Nyong'o gigantesca), uma mulher em estado terminal mas ainda uma força imparável. Ao lado do gato Frodo (sim…Sam e Frodo, I see what you did there), animal que de maneira quase mágica conduz o plot. Sammy levanta uma questão muito interessante: Qual o efeito de um apocalipse na alma (de uma perspectiva filosófica e não religiosa) de quem já tem a morte como um visitante comprovadamente próximo? Se morro amanhã, me desespero com a despedida final do próprio mundo na semana que vem? Qual o nível de minha angústia? Duvido que haja uma resposta universal.
Sammy escolhe a dela. Numa cena onde ela, com Frodo nos braços, caminha contra toda uma multidão que, num lento desespero, segue em direção à possível salvação (nada certa) numa parte X da cidade, Um Lugar Silencioso grita na nossa cara sua intenção primária: passearemos com uma mulher que não lutará para sobreviver, e sim decidirá como viver. Seu objetivo é uma fatia de pizza no Harlem (acompanhada de memórias da infância com o pai). Por que não?
"Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida; são jogos." — Camus
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Não confunda. Não trata-se de uma desistência da personagem (nem nossa). Pelo contrário. É preciso uma quantidade colossal de coragem para encarar o fim certo (leia-se confirmado) e então escolher os passos certos (leia-se corretos) para a tomada de controle da própria paz de espírito.
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"Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence. Seu rochedo é sua questão." — Camus
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Não adiantemos o fim, jamais busquemos o fim, mas que cheguemos nele pelo caminho que mais nos deixa felizes.
Não somos muito diferentes de Sammy. Se pensarmos bem, no fundo já estamos todos mortos. Não se incomode, nem se assuste. É o fato mais comum da vida. Existe em algum ponto do futuro, uma falta nossa, já garantida. E isso não é de todo ruim.
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Não serei hipócrita. Por vezes desejei com um instinto infantil a imortalidade mas era pelo medo bobo do vazio, pois o vazio é um infinito diferente daquele do desconhecido, é o fim das possibilidades. O problema não estaria na morte em si, mas nessa interrupção de uma possível felicidade, de possíveis prazeres. Possibilidades. Essas características são incorporadas no personagem de Eric (Joseph Quinn, para sempre Eddie Munson), que não esconde o medo e encontra na protagonista forte uma companheira admirável.
"Vivemos para o futuro: amanhã, mais tarde, quando você tiver uma situação, com o tempo você vai compreender…[o homem] pertence ao tempo e, nesse horror que o agarra, reconhece nele seu pior inimigo. Amanhã, ele queria tanto amanhã, quando ele próprio deveria ter-se recusado inteiramente a isso." — Camus
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Por outro lado, há beleza nessa existência fugaz. Traz a intensidade das experiências, a importância dos laços, o orgulho de presentear com dias e segundos.
Mas não estou aqui tanto para opinar, e sim para dizer que acompanhar Sammy é sentir orgulho ao vê-la tornar-se mestre do próprio tempo numa conclusão catártica, quase apoteótica.
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Por fim, a trilha de Nina Simone, mulher preta que lutou tanto, inclusive contra o câncer de mama e morreu em sua cama, enquanto dormia, não é gratuita. Ainda mais com a letra de Feeling Good. Para um filme que se baseia no silêncio, definitivamente Um Lugar Silencioso: Dia Um termina, para mim, numa nota alta.
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Te pergunto: sabendo que o seu fim é certo (porque é, me desculpe), o que você tem feito para viver? O que te faz sentir bem?